15.1.08

Sexta Feira (conto)

Sexta Feira

Era uma casa grande... um pouco velha, mas ainda assim era bem espaçosa e também agradável aos olhos. A pouca mobília, composta por moveis de qualidade e bem equilibrados entre eles, a boa combinação de cores e tamanhos de todas as coisas a todas as horas era algo de que Maira sempre teve muito orgulho. Um patrimônio adquirido em anos de trabalho e do qual ela cuidava com afinco, embora também não fosse obsessiva pela ‘coisas’; sabia que ainda assim, aquela casa, aquela mobília, aquilo tudo que havia construído era ainda secundário à sua obra maior de vida, a estabilidade. Tinha desde cedo a noção de que aquilo que necessitava era que tudo estivesse da maneira como está, gostava dos dias sem vento, gostava de observar as pedras, tinha um desgosto profundo por ‘acontecimentos’, ‘espontaneidades’ e afins.

Tanto gostava da estabilidade, que não sentia a necessidade de estabelecer um convívio social mínimo, para alem do estritamente necessário. Não quer dizer que não fosse à cidade, que não fizesse compras, que não fosse perfeitamente capaz de conviver ou sobreviver numa cidade, mas para alem da sobrevivência, seu interesse pela cidade e pelas pessoas era mínimo.

Maira havia, saído de casa muito cedo para viver só, teve três namorados até perceber que compartilhar a vida com alguém não era ‘para ela’, acreditava que aconteciam coisas demais na sua vida para que tivesse que compartilhar dos acontecimentos de outra pessoa, manteve desde sempre um relacionamento mínimo com seus irmãos, enterrou primeiro seu pai e depois sua mãe com muita seriedade e com poucas lágrimas, trabalhava desde jovem num oficio que escolheu não apenas por gosto, mas porque possibilitava o seu isolamento, era artesã, fazia jóias que vendia para lojas. Vendia sempre para as mesmas três lojas e comprava sempre dos mesmos dois fornecedores de matéria prima, era muito boa no que fazia e isso era o que lhe permitia ter uma boa estabilidade de vida. Seria tão boa quanto era em qualquer oficio que escolhesse, pois sua perfeição no trabalho não era fruto de seus sabores, mas de sua organização e diligencia, era uma mulher muito decidida e muito séria.

Ao longo de sua vida sempre viveu em casas afastadas da cidade, a idéia de viver em um apartamento nunca sequer passou pela sua cabeça, não suportaria viver cercada de vizinhos por todos os lados, depois que saiu da casa de seus pais mudou-se de casa mais duas vezes, todas casas afastadas da cidade e nenhuma delas teve televisão nem telefone, sempre preferiu resolver seus assuntos por cartas ou pessoalmente.

Sempre soube cuidar de si mesma em todos os sentidos, sabia cozinhar muito bem, sabia fazer os reparos básicos da casa e do carro, tinha um revólver para se defender de o que quer que fosse, cuidava muito bem da sua aparência, fazia seu próprio manicure e pedicure, assim como se depilava e também aparava o próprio cabelo – que sempre teve o mesmo corte -, ela mesma fazia a maior parte de suas roupas, que sempre foram muito bonitas e sempre teve o habito de arrumar a casa. Era até bastante vaidosa, mas para si mesma. Assinava revistas de moda, gostava de estar elegante e bonita, mas sempre séria. Decorava suas casas com um estilo um tanto atemporal e elegante no qual ressaltava uma simplicidade fina, que preza a leveza e o conforto sem se confundir com esbanjamento ou preguiça.

Era uma ávida leitora de manuais, e tinha grande prazer em aprender a fazer coisas úteis para o dia-a-dia, sabia primeiros socorros e também sabia muito sobre medicina cotidiana, cuidava muito bem da sua saúde com exercícios e uma alimentação saudável, era regrada nas suas finanças, de modo que sempre tinha algo sobrando para investir em poupança, aprendeu atravéz de manuais a cuidar de seu próprio carro de modo que ele raramente dava algum problema e quase nunca foi ao mecânico, aprendeu assim também a concertar seus eletrodomésticos, e atravéz de manuais foi aprendendo uma existência com o mínimo de convivência, aprendendo e fazendo tudo por ela mesma. Gostava muito de musica instrumental e tinha uma boa coleção de cd´s e um bom som, mas nunca gostou de filmes nem gostava de ler romances e tinha um interesse quase secreto por filosofia. Apreciava quadros, principalmente os de paisagem.

Quando se mudou para esta casa, tinha quarenta e sete anos, já ganhava um bom dinheiro com suas jóias e resolveu comprar sua ultima casa. Tinha uma sala ampla com uma janela que dava para uma montanha, uma cozinha ampla, uma garagem, uma suíte, um quarto no qual ela fez uma sala de leitura, um jardim de pedras e um porão com banheiro no qual ela fez seu ateliê.

Tinha seu tempo bem projetado, trabalhava das seis da tarde até as quatro da manhã, acordava às dez da manhã, fazia cooper, lia alguma coisa ou escutava musica, começava a preparar o almoço a uma da tarde, às três dava uma volta pelo jardim ou pelas redondezas (que era um descampado na beira de uma montanha), às quatro enchia o tempo com qualquer coisa, às cinco e meia preparava dois sanduíches para comer enquanto trabalhava (às oito da noite e às duas da manhã), e nunca para isso teve a necessidade de um relógio. Fazia compras uma vez por mês, no dia dez, que era um dia que beirava o desagrado na sua vida, pois saia para abastecer a geladeira e o freezer, comprar material de limpeza, comprar a matéria prima de seus artesanatos dos dois vendedores, vender as jóias para as três lojas e pagar as contas. Tinha um acordo com a padaria de que eles lhe entregavam dois pães uma vez ao dia e leite uma vez por semana. Deixava o lixo na porta de casa nas tercas, uma vez a cada semana. Ficava feliz por ter encontrado uma casa aonde pudesse envelhecer e morrer sozinha.

Passou quatro anos nessa felicidade morna, em plena serenidade e em que não lhe passou praticamente nada a não ser eventuais encontros com parentes em dias dez (tinha uma desconfiança de que eles planejavam esses encontros) e uma surpreendente visita de seu irmão, mas que não chegou a durar mais de uma hora, cortada com gentileza por Maira, que disse que já eram as seis, e que tinha que trabalhar.

Sexta feira, durante uma chuva forte, estava trabalhando no ateliê quando foi subitamente interrompida por uma falta de luz. Não gostou nem um pouco, sentiu uma profunda raiva de não poder controlar certas coisas e um desolamento ao pensar o que poderia fazer até sua hora de dormir, visto que nunca conseguiria dormir antes das quatro e ainda era meia noite, não podia ler nem tecer e muito menos trabalhar no escuro e sem seus equipamentos elétricos, pensou em dar uma volta e resolveu sair, mas quando estava cruzando o atelier para subir as escadas esbarrou em um objeto estranho, claro, jamais esbarraria com nada de sua casa, conhecia sua casa milimetricamente, sabia a quantidade de passos de qualquer lugar para qualquer outro, conseguiria encontrar qualquer coisa em sua casa de olhos vendados, para ela, esbarrar no objeto já era uma comprovação de que aquele objeto não era de sua casa.

Foi arrebatada por uma sensação entre o medo e o delírio em que mesmo com a luz não compreenderia aquele objeto, e assim que o percebeu já o agarrou com as mãos e se pôs a sentir-lo. Não pôde compreender a curiosidade que a tomou por aquele objeto desde que primeiro o descompreendeu, não entendia a forma que tinha o objeto que parecia não se encaixar na geometria, senão num emaranhado de formas que as vezes lhe parecia que tinha nas mão e as vezes lhe parecia que lhe encobria. Mesmo com a ausência da visão Maira perscrutava aquele objeto com sentidos que não lhe permitiam entender claramente sua forma. E não pode deixar de sondar o objeto até as quatro da manhã quando, vencida pelo habito e pelo sono, foi dormir.

Acordou no dia seguinte às dez da manhã, escutou Bach, às três já havia terminado de comer e deu uma volta pelas redondezas, às quatro escutou Wagner, comeu um sanduíche às oito da noite e outro às duas da manhã e foi dormir às quatro, mas agora algo parecia errado e Maira não se sentia mais só.

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