15.11.09

Antropofagia (de classe?)

Antropofagia
Foi um escândalo, todo mundo ficou chocado. Saiu durante semanas
nos jornais: uma cardiologista solteira seqüestrou um menor abandonado,
trancou-o em um porão, e durante seis meses comeu-o aos poucos. Ela
filmava tudo, um sadismo que embasbacou a sociedade como um todo, os
vídeos vazaram na internet, os camelôs fizeram e venderam milhares de dvd´s
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com as cenas, o julgamento teve um maior índice de audiência do que a copa
do mundo, a comoção foi geral e emglobou a nação numa onda de repugno a
esta senhora, este monstro que foi capaz de chegar a tal ponto de crueldade,
todos ficaram sabendo, mas os moradores de rua não ficaram nada chocados
com a notícia, pelo contrário, ficaram com muita raiva. Não era para eles
nenhuma novidade algo desse tipo, nada tão inesperado, acontece todo tipo de
merda com morador de rua: seqüestram para estuprar, para matar só de
maldade, pra escavizar, pra vender os órgãos, pra fazer experimentos
científicos, pra prender no lugar de criminosos, todo tipo de merda já acontece,
isso não é novidade. Mas aquilo foi sacanagem, durante seis meses, a vaca
manteve o moleque vivo, podendo comer o que quisesse, a cardiologista foi
querer comer menino de rua, porra.
Tinha um pessoal que conhecia e que considerava o Juninho, não
gostou da história... o moleque era de boa... na dele, mas dava confiança
demais... entrar em carro de rico, é? Vai ver... são tudo uns filha da puta...
ninguém vai ajudar ninguém aqui nessa merda não... vêm a tiazinha
branquinha, num carro importado.. “Vem aqui, menino, quero te dar uma
coisa...” vai ver no que dá... come ele... seis meses.. também tenho filho nessa
porra.... filha da puta. Tô com fome... Que que você quer comer? ...Um
médico.
Combinado; comeriam um médico. E mais, do mesmo hospital da outra
lá, só não podia ser a mesma porque ela estava muito visada... era complicado.
Planejaram, escolheram um que tinha um carrão, estacionava numa vaga meio
escondida e sempre saia tarde do hospital, além do mais, era gordinho.
Ficaram alguns dias rondando o hospital, estudando o local e também o doutor,
até que chegou o dia certo. Ficou um escondido numa sombra, o doutor só viu
muito tarde e só deu tempo de ele dizer ‘Meu carro...’ e pá! Uma paulada bem
dada o levou ao chão, e só quem soube dele desde aí foi a galera do Juninho.
Levaram ele para os subterrâneos da cidade, esconderam os restos da carcaça
em algum lugar que só eles sabem. Foi perfeito, sensacional... uma delícia,
carne macia, gostosa, e forte.. dava para passar mais de uma semana sem
comer mais nada. Dava uma força, um ânimo.... muito bom.
Sabiam que não podiam mais ficar por ali, porque iam começar a
procurar o doutor... jamais encontrariam.... mas decidiram dispersar, cada um
iria para outro canto, longe dali, e já não eram mais uma galera... mas só que
agora eles sabiam de uma coisa importante, e todos se sentiam mais fortes.
Sairia cada um para seu lado, à procura de mais carne de rico.
O doutor fez falta, já estavam procurando por ele no dia seguinte, o carro
dele ficou lá e ele sumiu. Mas como? A família e a polícia imaginaram que
fosse seqüestro, esperaram mais de uma semana por uma ligação... em vão.
Não houve ligação... que haveria acontecido? Porque não levaram o carro?
Teria ele fugido.. a pé? Tudo era perguntas nesse caso. Alguns engraçadinhos
até faziam piadinhas: ‘Será que a cardiologista comeu ele também?’ ... mas a
verdade, ninguém mais soube.
Passou-se um ano, e aqueles que o haviam comido já haviam se
espalhado pelo país, e a maioria já havia repetido o macabro menu. Outros
também haviam experimentado junto a estes, e também muitos destes outros
já haviam repetido o menu, e o apresentado a outros ainda. Vários
desaparecimentos sem resposta. A idéia já estava no ar.
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O problema é que depois de algumas vezes, o pessoal começava a
descuidar.. foi em Brasília, às duas da manhã, no parque da cidade, que foram
pegos os primeiros. Uma patrulha da PM fazia uma ronda no local quando viu
um aglomerado de uma sete pessoas num lugar sombrio do parque,
acreditaram que tratava-se de uma orgia e foram enquadrar, quase caíram pra
traz quando viram do que se tratava, pois era um grupo de moradores de rua
que devoravam um publicitário, cru. Foi outro escândalo, até maior do que o do
menino Juninho.. desta vez fora um rico comido pelos pobres, e isso a opinião
pública não poderia perdoar. Durante dois meses foi este o assunto do
momento, saiu em todos os jornais, em todas as emissoras de televisão e
rádio, houve missa com a família o enterro foi quilométrico, com milhares de
desconhecidos lamentando a morte do publicitário, e vários famosos,
comentando-a. Houveram palestras nas universidade, houveram fotos dos
restos mortais espalhadas por e-mails e tablóides Brasil afora. Todos se
chocaram.
O depoimento do policial que presenciou a cena era uma das coisas
mais estarrecedoras desse acontecimento: “Chegamos ao local, não sabíamos
do que se tratava, eram quatro homens e três mulheres em volta de um objeto,
quando os abordamos eles avançaram para cima de nós, suas roupas e seus
rostos estavam cobertos de sangue, mostravam os dentes como animais
selvagens, seus olhos brilhavam intensamente e estavam completamente
abertos. Vieram para cima de nós como leões, não houve tempo para pedir
reforços, primeiro atacaram meu parceiro, e o morderam e pulavam encima
dele e o arrastavam no chão, e com uma pedra, quebraram sua cabeça. Eu
puxei meu revolver e consegui matá-los, mas eles ainda me atacaram, e eu
ainda tenho no braço a cicatriz da mordida de uma das mulheres. Foi horrível...
deus... foi horrível... somente depois de matar os sete, e de confirmar, com
tristeza, a morte de meu parceiro, pude ver que o objeto do qual eles estavam
em volta era o corpo de um homem... meu deus... foi horrível.”
Mesmo a polícia ficou assustada com o fato, principalmente porque,
pouco tempo depois, encontraram em outro parque público, no Rio de Janeiro,
os restos mortais de uma mulher que havia sido canibalizada, era uma
advogada que costumava caminhar no parque nos fins de tarde... não muito
tempo depois, em São Paulo, um policial foi chamado para atender a um
problema em uma casa, e nunca mais voltou, quando foram procura-lo,
encontraram uma casa abandonada e os restos mortais do policial estavam
dentro de um saco que havia sido jogado dentro de um bueiro próximo. Tudo
isso no intervalo de dois meses. Os três casos foram amplamente divulgados
pelos meios de comunicação, e o assunto parecia cada vez mais longe de se
distanciar da boca do povo. Nos meses que se seguiram, não somente as
notícias não foram esquecidas, como a elas foram somando-se outras mais.
Em Minas, uma mãe comeu seu filho recém nascido, ainda na
maternidade. No Ceará, os auxiliares de cozinha de um renomado restaurante
comeram o chef a cabidela. Começaram a chover casos de canibalismo nas
delegacias de todos os estados, e na mídia local, nacional e internacional,
inclusive já haviam acontecido alguns casos avulsos em Bogotá, e em Buenos
Aires, em Esmeraldas... A questão retornou à Brasília quando um parlamentar
desapareceu misteriosamente depois de uma seção noturna. Algo que intrigou
a polícia foi o fato de seu carro ter ficado abandonado no estacionamento. As
investigações nunca chegaram a nenhuma conclusão, mas os investigadores
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ressaltaram que o comportamento dos acessores do parlamentar desaparecido
era... suspeito.
Desta vez, resolveram não levar o caso à mídia.. a questão já estava se
aproximando do poder... o que estava acontecendo? Acabaram por chegar à
conclusão de que quanto mais se divulgava na mídia, mais os fatos tornavam a
acontecer.. talvez não fosse o caso de continuarem falando nisso, por um bem
maior. Mas de qualquer forma, não poderiam deixar de dar qualquer resposta
aos casos que vinham ocorrendo. Foi por isso que inventaram o grupo
terrorista TOR, que era o responsável pela onda de seqüestros que vinha
ocorrendo nos últimos tempos. Não só o parlamentar, mas diversos foram os
desaparecidos que foram considerados como seqüestrados pela TOR, já
haviam até mesmo cartas de autoria, e as investigações estavam cada vez
mais perto de serem solucionadas... mas era tudo mentira.. um conchavo entre
a polícia e a mídia, para tentar esconder que o que realmente havia acontecido
a estas pessoas é que elas haviam sido comidas. O poder instituído tentou de
diversas formas fazer com que as pessoas esquecessem do canibalismo... em
vão.

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